Palavras.


Há 4 meses escrevi umas palavras. Não as publiquei. Simplesmente porque não, porque sucumbi à inércia ou porque achei que palavras são só palavras. Não fazem, não ajudam. Mas talvez possam as palavras levar à acção, se forem fortes, se tocarem alguém. 

Hoje li um texto que me tocou, que causou em mim uma imensa revolta, uma angústia no peito que não me permite adormecer sem antes pôr esta ira em palavras. Sei bem que o sensacionalismo aparece nestas alturas, em forma de textos publicados por jornais que todos acompanhamos. E sei que, com eles, mais do que sensibilizar pretendem visualizações, vendas, notoriedade. Mas o que também sei é que as histórias que usam aconteceram, de facto, e isso não me pode deixar indiferente. Imaginar que uma qualquer pessoa que desconheço possa ter caminhado por uma estrada com o corpo queimado ao ponto de deixar pegadas de sangue no chão incomoda-me. Não me permite dormir, deixa-me com um nó na garganta, faz-me chorar por dentro e encher os olhos de lágrimas que por um estúpido pudor não caem, como se chorar fosse dar uma parte fraca de mim. 

Hoje retomo as palavras que escrevi há 4 meses atrás. Se não o dissesse achariam que tinham sido escritas e sentidas hoje, porque infelizmente hoje podemos senti-las de igual forma, com um acréscimo de revolta por não termos feito nada, por nem a estas palavras ter mostrado a luz do dia. 
O que podemos fazer para mudar? Para mudar este país que se vê a arder, levando consigo vidas, e que deixa impune os responsáveis por tamanha crueldade. Os que pagam para que estes fogos se propaguem, os que com as suas próprias mãos os ateiam, os que dirigem um país sem conseguir defender o que é seu, simplesmente porque não, e quase nos fazem agradecer o seu empenho e as férias que perderam em prol do nosso bem estar, neste país tão bonito, que de natureza já só vai ter mar. 

Estas foram as palavras que escrevi há 4 meses, podia tê-las escrito hoje, infelizmente, encaixariam na mesma:

"Ligar a televisão às 8 da noite é doloroso. Lidar com imagens de completa destruição é triste, ouvir o que aquelas pessoas têm para nos contar dói quando entra nos nossos ouvidos. Dói ver a quantidade de mata que ardeu em Portugal, dói ver que, mais uma vez, estamos novamente incapazes de controlar os fogos que todos os anos nos batem à porta. Mas dói ainda mais as vidas que perdemos. Foram muitas, demasiadas, e incomoda pensar que isto aconteceu aqui, bem ao nosso lado, sem que nada pudéssemos fazer... 

Ouvir as notícias mexe-nos com as entranhas, fica tudo muito pequenino e apertado. Pelos relatos na primeira pessoa de quem sobreviveu, de quem viu, de quem de forma milagrosa conseguiu escapar e de quem perdeu. Mas dói também ouvir o que as pessoas que representam o nosso país conseguem verbalizar neste momento. Ouvir um senhor ministro dizer "estou de conscência tranquila" revolta. Mexe com tudo o que tenho. Como pode existir alguém de consciência tranquila num momento destes? Eu não estou, não estão as pessoas que me rodeiam, e acredito que da mesma forma pensa a grande maioria do país. 
Não conhecia nenhuma das vidas que se perdeu nestes dias, não conheço ninguém daquela terra. Mas estamos a falar de pessoas que foram queimadas vivas!! Que encararam a morte de frente sem nada poder fazer! Consciência tranquila como assim?! Estas pessoas viram as chamas saltarem-lhes para cima, encurraladas numa estrada de fumo e chamas. Enquanto uns corriam a arder e outros ficavam estendidos pelo caminho sem que nada os pudesse salvar. 

Os que sobreviveram viram o inferno à sua frente! Provavelmente preferiam ter ido também para não terem que viver com a imagem que presenciaram, com o cheiro que sentiram, com os gritos que, acredito, devem ter ouvido, bem alto.
Quando alguém diz que está de consciência tranquila não pode, certamente, estar a pensar com clareza no que ali se passou. 
Já vi de perto as chamas quererem ganhar uma luta comigo, num episódio que 3 anos depois ainda deixa marcas no corpo e algumas memórias no pensamento que dificilmente passarão. Num episódio tão leve mas que ainda assim me leva todas as semanas para junto de pessoas que, como eu, tiveram que enfrentar o fogo de alguma forma. Sei o que é tentar lutar para o que é nosso não ser destruído, e ainda assim ter que desistir para salvar a nossa vida. Tive sorte. Tudo o que eu tive foi sorte num momento para o qual não estava preparada, ninguém nos ensinou a encarar um fogo. E ele é sempre mais forte. Não pensa de cabeça quente, não tem que se proteger e pensar em como agir.

Durante estes 3 anos conheci o que é ter força quando nos vemos a ser sugados para a morte. De pessoas que no regresso de férias se viram encurraladas num carro em chamas perdendo alguns dos seus familiares, a quem lá esteve, no meio da mata a lutar por nós e que traz consigo marcas para o resto da vida, numa vida que tem agora que se adaptar à realidade de não ter uma coisa tão certa como um dos membros. Estive longe de sentir o que qualquer uma daquelas pessoas sentiu naquele momento. Incomparável. Mas sei de perto o mínimo que podemos sentir naquele momento. E tudo o que neste momento não podemos sentir é tranquilidade. "

m.*

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